Aparecida de GoiâniaPolítica

Eliane Cantanhêde e o colunismo político que adora coturnos

Boa parte dos articulistas mais conhecidos do Brasil segue vendendo a visão distorcida de que os militares são vítimas de Bolsonaro – atuando como assessores de imprensa do Exército


João Filho
INÍCIO DO GOVERNO BOLSONARO, parte importante da imprensa nutriu a ideia de que os militares seriam um freio aos ímpetos arbitrários do nosso presidente insano. Acreditavam no mito dos militares como “guardiões da democracia” e os colocavam como um contraponto à ala olavista, que representaria o lado selvagem e autoritário do governo.
Mas, claro, tudo não passou de ilusão. De lá para cá, os milicos intensificaram ainda mais o apoio ao presidente, aceitaram numa boa suas ameaças de golpe e foram co-autores de todas as atrocidades que o Planalto impôs à democracia nos últimos três anos. Portanto, ninguém mais tem o direito de ser inocente e cair nessa conversa mole.
Mas ainda há no colunismo nacional quem enxergue alguma moderação e sensatez por parte dos milicos bolsonaristas. Nas últimas semanas pipocaram textos na imprensa destacando que o Exército resolveu se distanciar do negacionismo de Bolsonaro. A resposta dura que o almirante Barra Torres deu à intimidação que o presidente fez à Anvisa seria um exemplo de como os militares estariam rompendo com o negacionismo.
No Estadão, Eliane Cantanhêde escreveu uma coluna intitulada “Após meses submersos, militares voltam à tona contra o negacionismo, a favor da verdade”. Toda essa ingenuidade — espero que seja apenas ingenuidade — segue ao longo do texto: “Depois de um mergulho temerário no bolsonarismo, dos solavancos que levaram à demissão de toda a sua cúpula e dos vexames do general Eduardo Pazuello e seus coronéis na Saúde, as Forças Armadas submergiram e saíram do foco e do noticiário por um bom tempo. Voltam à tona agora afirmativas e sob aplausos de boa parte da opinião pública que andava ressabiada com os militares”. Ou seja, segundo a jornalista, parte da opinião pública que se fia pela ciência agora está aplaudindo um suposto abandono dos militares do discurso negacionista por causa de uma cartinha de um almirante. O mito do militar civilizado está de volta na mesa.
Em outro texto baseado em conversas com militares, a colunista do Estadão faz uma pergunta logo no título: “A nova guerra entre esquerda e bolsonaristas: quem ameaça mais a democracia?”. A dúvida é absurda, negacionista e está calcada em um dois-ladismo desonesto, já que quem tem ameaçado a democracia nos últimos anos é a extrema direita governista, e não a esquerda, que foi arrancada do poder através de um impeachment sem base jurídica, teve seu principal líder preso também sem base jurídica, e nem por isso fez quaisquer ameaças à ordem democrática.
‘Certamente há militares que não acreditam no negacionismo sanitário de Bolsonaro. Mas o fato é que todos que compõem o governo aceitaram — e continuam aceitando — o uso dessa retórica’.
Mas Cantanhêde faz uma ressalva: “Atenção: não considero esse risco [esquerda ameaçar a democracia], mas escrevo porque se trata de informação relevante, para ficar no radar o que setores militares e bolsonaristas pensam e, eventualmente, podem usar para validar algum tipo de ‘reação à altura’”. Entenderam?
A colunista não acredita que uma derrota da esquerda trará ameaças à democracia, mas, mesmo assim, achou razoável levantar a possibilidade nas letras garrafais no título com a justificativa de que esse é o pensamento dos militares com quem conversou. Ela repassa a mensagem que os generais bolsolavistas querem transmitir. Mais uma vez o jornalismo atua como assessoria de imprensa da caserna negacionista.
José Casado, na VEJA, também escreveu uma coluna apontando na mesma direção. O título: “O Exército se distancia do negacionismo bolsonarista”. No texto o jornalista mostra que o Comando do Exército comunicou à tropa de 220 mil soldados que todos deveriam se vacinar e não difundir desinformação nas redes. Segundo o comunicado, a vacinação é obrigatória para o retorno dos soldados à atividade nos quartéis, porque a saúde é essencial à manutenção da “capacidade operativa”. Claro, o Comando do Exército só é negacionista internamente e quando lhe convém. Externamente, tudo bem ter um capitão maluco que diz que a defesa da imunização da população é coisa de gente “tarada por vacinas”.
Certamente há militares que não acreditam no negacionismo sanitário de Bolsonaro. Mas o fato é que todos que compõem o governo aceitaram — e continuam aceitando — o uso dessa retórica como tática política para guiar os eleitores de Bolsonaro. Não importa se, no seu íntimo, o alto comando acredita na vacina e pede paras tropas se vacinarem contra o covid. Eles seguem no comando do governo que até hoje boicota com todas as forças a vacinação da população.
É incrível imaginar que a essa altura do campeonato ainda há quem acredite que os militares podem de alguma maneira serem dissociados do desastre do governo Bolsonaro. Eles são o próprio governo. Os milicos estão muito bem acomodados em todos os setores e faturando como nunca faturaram enquanto o resto do país está quebrado. Não é razoável imaginar que só agora eles receberam uma iluminação e decidiram largar o negacionismo no qual chafurdaram todo esse tempo.
Durante todo o governo, militares atuaram firmemente em todas as frentes possíveis de negacionismo. E não foram como coadjuvantes. Investiram forte também no negacionismo climático, espalhando teorias absurdas como aquela que diz que a Amazônia não pega fogo porque é úmida, e o desmatamento seria culpa dos ribeirinhos e de povos indígenas.

O Instituto General Villas Bôas organizou um evento com negacionistas climáticos ano passado.

Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil

O Instituto General Villas Bôas, comandado pelo general Villas Bôas, ajudou o governo fornecendo o insumo intelectual das mentiras. O instituto organizou em agosto do ano passado um evento sobre mudanças climáticas e convidou dois famosos negacionistas ligados ao agronegócio: o meteorologista Luiz Carlos Molion e o geólogo Geraldo Lino.
Contrariando todos os consensos científicos, Molion afirmou barbaridades como “alarmismo sobre a Amazônia não tem base científica”, “as mudanças climáticas não são causadas pelo homem” e que “há resfriamento global, não aquecimento”. Já Lino chamou o aquecimento global de “fraude” e o ambientalismo de “fraude”. O evento contou também com a participação do general e vice-presidente Hamilton Mourão.
Quando a pandemia começou, Bolsonaro bateu cabeça para escolher quem iria liderar o país nessa missão. Demitiu dois ministros médicos pelo fato de eles seguirem as recomendações da ciência. Só foi sossegar quando escolheu um general plenamente alinhado às teorias do negacionismo sanitário. Pazuello passou a pandemia destruindo o Ministério da Saúde com base nas teorias da conspiração.
A desastrosa gestão do general levou o Exército para a CPI fazendo com que militares tivessem que explicar o lobby que fizeram para a contratação de empresas de reputação duvidosa. Negacionismo e corrupção foram as grandes marcas da gestão dos militares na Saúde.
Não é de hoje que o negacionismo floresce entre os milicos brasileiros. Eles usaram armas para tomar o poder com base na lorota de uma ameaça comunista, destruíram a democracia e até hoje chamam isso de “revolução”. Mesmo assim, ainda somos obrigados a ouvir essa conversinha de “militares moderados e civilizados” desde o ano retrasado.
Muito provavelmente é essa a imagem que os milicos querem passar para o público, fazendo a imprensa cair em todas as cascas de banana que jogam. Na prática, faturam com tudo isso. Parte do colunismo brasileiro tenta passar a impressão que os militares apenas toleraram as loucuras negacionistas de Bolsonaro. Mentira. O negacionismo é uma tática comum de todos os governos autoritários ao longo da história, e a negação da ciência está na essência do pensamento dos militares no Brasil.
Fonte: The Intercept Brasil

Waldemar

Waldemar Rego é jornalista formado pela Faculdade Araguaia com diploma reconhecido pela Universidade Federal de Goiás UFG com extensão na área de mídia e política no cinema, fotografia jornalística e publicitária, diversidade cultural da mulher na comunicação, comunicação em tempos de mídias sociais, identidade visual em peças publicitárias e no jornalismo. Waldemar Rego também é artista plástico escritor e poeta.

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