Imagine que você receba a improvável tarefa de explicar um jogo de futebol a um visitante extraterrestre de passagem pelo Maracanã, em dia de Fla-Flu. Com sua inteligência extraordinária o turista intergaláctico rapidamente entende as regras do jogo. Assiste, passivamente, todos os lances e calcula, de cabeça, as estatísticas mais importantes. Ao final, ele reage:
“Muito interessante este jogo, mas por que os espectadores vibram, gritam e choram? Como isso altera o resultado do jogo e o que eles ganham com a vitória (ou perdem com a derrota)?” Ele tenta entender aquilo que qualquer expectador perfeitamente objetivo poderia se perguntar sobre esta paixão nacional: qual a finalidade prática do delírio, do sofrimento, dos arroubos e da comoção? Não dá para explorar as conexões passionais que fazem a mágica deste esporte sem falar das idiossincrasias que nos tornam humanos.
Futebol é sobre muito mais do que esporte. É sobre identidade, sobre pertencimento e afirmação. É exatamente por isso que a conexão entre as competições esportivas, identidade e valores, que estão na base da recriação dos Jogos Olímpicos modernos como um instrumento de educação da juventude, é tão poderosa. As nossas paixões são uma via de acesso direta às nossas decisões, sem desvio nos lugares da mente em que elaboramos as racionalizações. Estas últimas, como sabemos, só são evocadas posteriormente, como justificativa.
Não é surpresa alguma, portanto, que o futebol deflagre emoções extremas, mas não era muito clara a conexão entre os jogos e a violência contra a mulher. Esta conexão é intuída e até cantada na música popular brasileira, como em ‘Gol Anulado’, de João Bosco e Aldir Blanc.
““Quando você gritou Mengo/ No segundo gol do Zico/ Tirei sem pensar o cinto/ E bati até cansar”.
Estamos, de certa forma, familiarizados com as cenas de violência extrema entre torcedores e torcidas organizadas rivais, mas aquela violência que ocorre longe dos olhos e do controle social frequentemente escapa à consciência coletiva: quando o time do coração perde, ela apanha. Ou melhor, quando o time do coração joga, ela apanha. É esta correlação perversa que foi recentemente medida e quantificada em estudo do Fórum Brasileiro de Segurança Púbica encomendado pelo Instituto Avon.
Para o levantamento, foi feito um cruzamento entre bases de dados de violência com informações de todos os dias de jogos do Campeonato Brasileiro da série A entre os anos de 2015 e 2018 em cinco capitais brasileiras: Rio de Janeiro, São Paulo, Salvador, Belo Horizonte e Porto Alegre. O levantamento indicou que em dias em que um dos times da cidade joga, o número de registros de Boletins de Ocorrência de ameaça contra mulheres aumenta em 23,7% e o número de registros de B.O.s de lesão corporal aumenta em 20,8%. Em dias em que a partida desse time acontece na própria cidade, o aumento de registros de lesão corporal é de 25,9%. Nesses registros, de maneira significativa, os autores da violência são companheiros ou ex-companheiros das vítimas, o que não chega a surpreender os estudiosos do tema.
Ao destrincharmos os dados por perfis, percebemos que a maior parte das mulheres que registram ocorrências de ameaça em dias de jogos tem entre 30 e 49 anos, em todos os municípios estudados. Já os casos de agressão física têm, em sua maior parte, mulheres mais jovens, entre 18 e 29 anos. Em Salvador e Belo Horizonte, mulheres negras correspondem a mais de metade das vítimas em casos de ameaça e agressões, chegando a 8 em cada 10 na capital baiana. No Rio de Janeiro, cerca de 5 em cada 10 mulheres que registram B.O.s em dias de jogos são negras.
Agora podemos afirmar, o que já percebíamos difusamente: que há uma forte relação entre jogos de futebol e violência doméstica contra mulheres, o que demonstra mais uma faceta da associação entre homens, esportes e violência. Talvez falte um elemento aí, que não é citado na pesquisa, mas que permeia os depoimentos nos atendimentos das delegacias especializadas no atendimento da mulher: a bebida alcóolica.
Este estudo, assim como outros análogos realizados nos Estados Unidos e Inglaterra com resultados similares, nos incitam a refletir sobre os papéis dos clubes esportivos, assim como de seus patrocinadores, confederações, organizadores e responsáveis pelos campeonatos, a usar esta tremenda plataforma de comunicação e cultura que é o esporte para estabelecer clareza e posicionamento pela valorização da vida das mulheres.
Felizmente, temos exemplos encorajadores que nos levam a acreditar que uma das paixões fundantes de nossa identidade pode ser também uma alavanca de um novo paradigma de sociedade: uma em que vibramos, jogamos e encontramos redenção para os nossos problemas, juntos.
FONTE: Exame – Daniela Grelin é diretora executiva do Instituto Avon