Era agosto. Boa parte do país celebrava o avanço da vacinação contra a covid-19, que chegava então aos menores de 18 anos. As mortes diárias pela doença diminuíam. Para a médica e representante do Conselho Federal de Medicina no Amapá, Maria Teresa Renó, porém, a vacinação das crianças e adolescentes não era algo a ser comemorado, mas combatido.
Durante uma reunião com os outros conselheiros, em 20 de agosto passado, um dia antes do calendário de vacinação incluir os adolescentes de 17 anos em Macapá, a médica defendeu que o CFM tinha que divulgar um posicionamento contrário à obrigatoriedade da imunização, “principalmente frente ao início da vacinação de crianças”. Segundo a ata do encontro, que está disponível no site do CFM, para Renó “os pais devem ter o direito de escolher se querem vacinar seus filhos ou não”.
No Twitter, em janeiro, quando mais de 50 países já haviam começado sua vacinação, a médica havia dado “graças a Deus” que o tratamento precoce tinha funcionado para ela e para seus familiares. É uma boa notícia, mas provavelmente ela e a família teriam se curado sem grandes sequelas se tivessem tomado só aspirina – em 85% dos casos, a doença é assintomática. Mas, segundo a médica, ali, em janeiro, havia dúvidas sobre a eficácia de uma vacina contra a covid-19.
Renó, dona de uma clínica oftalmológica em Macapá, não é a única figura da elite amapaense a defender um tratamento sem efeito e ignorar evidências científicas – tentamos contato com a médica, que não nos retornou. Suas ideias são reforçadas desde o início da pandemia por gestores públicos, empresários e até representantes do poder Judiciário do estado.
Como mostramos na quinta, o prefeito da capital, Antonio Furlan, do Cidadania, usou profissionais do programa nacional de Estratégia de Saúde da Família para distribuir kits covid pela cidade, de porta em porta, ao menos até agosto, quando até a empresa que produz ivermectina já havia dito que a medicação não serve para combater a covid-19. Os enfermeiros que se recusaram a fazer as entregas foram demitidos.
Antes disso, em maio de 2020, foi a vez da então desembargadora do Tribunal de Justiça do Amapá Sueli Pini colar cartas pelas ruas de Macapá defendendo o fim do isolamento social, como também mostramos no Intercept. Em uma entrevista recente a uma rádio local, a agora juíza aposentada disse que não se vacinou e nem permitiu que seus familiares o fizessem. Também defendeu que máscaras não têm “nenhuma comprovação da eficiência” para barrar o contágio pelo vírus.
O boicote da elite de Macapá no combate à covid-19 teve efeito – negativo, é claro. O estado está quase na lanterna da corrida da vacinação no Brasil – perde apenas para Roraima. Isso não acontece por falta de vacinas, mas pela baixa adesão da população. Em fevereiro, quando os idosos eram prioridade, nem 50% das doses disponíveis foram aplicadas no tempo esperado. Em março, Macapá era a cidade do Amapá que mais havia recebido doses, mas ocupava a sexta posição no ranking estadual de vacinação.
Atualmente, apenas 54,2% da população do Amapá recebeu a primeira dose ou uma vacina de dose única, e menos gente ainda (24,3%) completou o esquema vacinal. A média nacional é de 71,7% da população com a primeira dose e 45,2% completamente vacinados.
Para gente como a médica, o prefeito e a desembargadora aposentada, os riscos do negacionismo são bem menores. Sem renda e sem o privilégio do home office, foram os pobres que mais morreram de covid-19, como mostram dados da Pnad Covid-19, elaborada pela FGV Social. Com dinheiro no bolso, é fácil jogar a favor do vírus.
Fonte> The Intercept |